Sexta-feira, 3 de Fevereiro de 2012

Artigo décimo-quinto

O Bernardo entrou pela porta de vidro do café. Metade das mesas estavam ocupadas, algumas com as caras conhecidas dos clientes do costume. Era tudo tão normal como habitualmente, se não fosse o pequeno sentimento de satisfação que tinha.

Puxou de uma cadeira, sentou-se, aconchegou-se para a frente e recostou-se. Deixou o olhar vaguear com aquela falta de atenção dos que se concentram no interior.

Há sempre momentos de espera, aqui e ali. Se ele fosse seguir o conselho do manual que tinha andado a ler, uma coisa sobre escrita criativa por uma americana qualquer, devia estar agora a fazer uma lista, ou a examinar aquilo que via, sentia, cheirava e ouvia enquanto esperava.

 

Puseram-lhe à frente metade de um café e um copo de água.

— Obrigado.

O empregado virou costas à pressa e foi à vida dele. Não é que ele fosse mal educado, pensou o Bernardo, o que se passa é que toda a gente exige direitos e não tem obrigações, como ser educado e dizer coisas como "não tem de quê". Apercebeu-se da contradição e desistiu outra vez de pensar.

A porta do café abriu-se, e entrou uma morena baixinha e, vamos admiti-lo, vistosa no sentido do corpo. Reconheceram-se, acenaram um ao outro e ela veio direita à mesa. Trocaram beijos e ela sentou-se.

— Então, Bernardo, como é que isso vai?

— Como de costume.

— Só isso? Deves ter uma vida muito chata, ou não gostaste de me ver. Olha, eu ontem fui à feira de Carcavelos, sabes, e encontrei lá uma amiga minha a vender coisas velhas, ao lado das ciganas.

— A sério? Mas as pessoas podem fazer isso?

— És um tonto. Tanto que podem que ela estava lá.

— Pois. Bem visto.

— E dizem que ela, toda bem posta, não paga nenhuma da roupa que tem no corpo. É assim, muitas vezes os que andam com roupinha de marca por fora não comem e não teem onde cair mortos.

— Pois, isto está uma desgraça.

— Não está, é, sempre foi. Mas deixa-te disso, quero ouvir de ti, então o que tens feito?

Numa mesa ao fundo, ouviu-se um estardalhaço de vidros. O chão ficou cheio de café com leite, a pingar, e uma pessoa levantou-se à pressa e começou a sacudir as calças. O empregado correu com uma esfregona e um balde.

— Bem, até tenho qualquer coisa para contar.

— Então mexe-te, homem, conta!» disse a Elisa, sorrindo e empurrando-lhe o braço com a mão. «Dizes-me tão pouco de ti...»

— Bem, é que... tu lembras-te de eu ter começado aquela coisa da escrita criativa, não lembras?

— Claro, mas olha, não percebi donde lhe vem a parte "criativa".

— Se queres que te diga, também ainda não sei, mas a verdade é que me pôs a escrever.

— Ora ao menos qualquer coisa. E de que escreves tu?

O Bernardo quase disse que escrevia manuais escolares. Tinha escrito tantos que era a única coisa que lhe vinha à cabeça quando lhe faziam aquela pergunta. Levou os dedos à haste dos óculos, como para ter a certeza que os tinha postos. Mas não era verdade, ele já não escrevia manuais escolares.

— Bem, por assim dizer, não escrevo acerca de nada.

— Tás parvo? Como é que se escreve acerca de nada?

— É que nada daquilo, tudo posto junto, leva a algum lado. Ando só para ali a remoer», disse ele.

— Hás de escrever de alguma coisa.

— Ideias minhas. Mas ao menos aquilo do livro da americana pôs-me a escrever. Ela diz que não há desculpa para não escrever pelo menos dez minutos por dia. Acho que tem razão. Mesmo quando não temos nada a dizer.

— E então escreves das tuas ideias. Já é qualquer coisa. Quem não tem ideias não pode escrever delas.

— Sim, mas é tão limitado!

— Mas não podes escrever acerca das ideias de outros! Eras capaz de escrever das minhas ideias?», disse a Elisa.

— Mas devia poder; e mais te digo, se me contasses as tuas ideias, eu podia escrever acerca delas.

— És mesmo um cusco disfarçado! Mas olha, meu querido, se escreveres das minhas ideias depois de teres uma ideia delas, estás a escrever sobre a tua ideia das minhas ideias.

— Ena! Andas a estudar filosofia?

— Não, meu parvinho, estou a pensar! Ou tu és daqueles que acham que as mulheres não pensam e só servem para coser meias?

O Bernardo ficou pensativo. A Elisa lá o tinha encurralado em várias frentes, mas ele ainda não se tinha apercebido de como isso tinha acontecido. Era uma coisa que ele gostava nela. Provocava-o, e não era só com o corpo.

Lá fora começou a chover. Não que fosse inesperado, toda a gente ali tinha o seu casaco, e havia muitos guarda-chuvas à entrada. O Bernardo, simplesmente, tinha-se esquecido do dele.

— Não, Elisa, claro que não penso isso, e tu sabes.

— Então porque é que falas como se o pensasses?

— Não sei o que te diga.

— Vá lá, vamos ao que interessa, conta-me novidades e não fujas com o rabo à seringa.

— Bom, até tenho uma. Ontem, no meu blogue... espera aí, contei-te do blogue, não contei?

— Contaste, tontinho, contaste. Anda prá frente, desembucha lá.

— Pois, ontem, dizia eu, no meu blogue, pus o meu décimo-quinto artigo.

— E então? O que é isso do décimo-quinto artigo?

— Bem, é o artigo número quinze. É o meu décimo-quinto texto. Espera aí... não tomas nada?

— Não. Vi-te lá de fora, apeteceu-me vir meter conversa e cuscar a tua vida. Mas ainda não percebi que número tão importante é esse.

— Olha, já acabei, tenho de ir andando. Vens comigo?

— Só por um bocadinho. Tenho de ir às compras.

— Vamos.

Bernardo deixou o dinheiro na mesa. Levantaram-se e foram para a porta. Olhando em volta, Bernardo viu as pessoas nas suas mesas como ilhas, falando umas com as outras no limite quadrado do seu territoriozinho, os sozinhos de olhar no espaço, ou a remexer no telemóvel, ou a ler o jornal. Olhando em frente, viu o traseiro dela que se mexia, de um lado e doutro, com cada passo.

Saíram, e continuava a chover.

— Ó Bernardo, esqueceste-te do guarda-chuva lá dentro. Vai buscá-lo, não vês que está a chover?

— Esqueci-me do guarda-chuva, mas foi em casa. Não estava a chover.

— Palerma. Encosta-te, que eu cubro-te.

O Bernardo chegou-se para baixo do guarda-chuva, mas teve de baixar a cabeça. Ela reparou e pôs o guarda-chuva mais acima, mas mesmo assim não chegava. Ela era quente e o corpo dela moldava-se ao dele. Era uma sensação agradável e não inesperada nem desconhecida. Há muito tempo que gostava dela e a ouvia com atenção, mas também a olhava com mais do que um interesse intelectual, e ela parecia muito à-vontade com ele.

— Então conta-me lá do mistério do número quinze.

— Tenho de me lembrar disso, parece um título de um policial!» Ela riu. Pararam à beira do passeio, depois atravessaram a rua, passando entre os contentores do lixo e um carro estacionado.

— É que no princípio do blogue, acho eu, escrevi que já achava muito bom se escrevesse quinze artigos. Ontem fi-lo, nem dei por isso e, calcula, no total, já ultrapassei as dez mil palavras.

Tiveram de ir em fila para deixar espaço para as outras pessoas. Bernardo pensou que, se fossem outro tipo de pessoa, daquelas que só têm direitos, tinham continuado a par e obrigado os outros a sair do passeio.

— Isso das dez mil palavras é um concurso ou quê?

— Não, é só uma maneira de medir a extensão dum texto. Digamos, por exemplo, um conto terá cerca de três mil e quinhentas palavras, um artigo de jornal quinhentas, uma novela mais de cinquenta mil.

— Isso parece-me tudo uma grande treta. Coisas a metro.

O semáforo dos peões estava encarnado, mas, como não se via ninguém, atravessaram até à ilha no meio.

— Sabes, Elisa, eu... gosto muito de ti.

A Elisa estacou, se é que se pode dizer isso de quem está parado, e olhou para ele com ar inquisidor.

— Gostas muito de mim, em que sentido?

— No sentido em que me sinto bem contigo, em que quero estar ao pé de ti, e em que me lembro de ti quando estou lá por casa, sozinho.

A Elisa baixou o guarda-chuva e ficaram os dois a olhar um para o outro com a água a cair-lhes na cara.

O Bernardo ficou à espera. Era o melhor que ele podia fazer enquanto declaração ou, no mínimo, engate, ou fosse o que viesse a ser. Mas a verdade é que não sabia o que ia sair dali, porque, na verdade, nunca se sabe.

— Bernardo, meu tonto, isso é muito querido. Eu sei que não sabes muito da minha vida, mas a verdade é que estou numa relação.

— Ah, bom, pronto, não sabia. Desculpa.

— Claro que não sabias. Não ando por aí a falar nisso, nem mesmo contigo.

Puxou o guarda-chuva outra vez para cima. O semáforo dos carros fechou, o dos peões voltou a abrir.

— E posso saber quem é o felizardo?

— Não me venhas com frases feitas, um escritor não faz coisas dessas, e tu queres ser escritor, não é?

— Tens razão.

— É a Susana. Olha, agora é que tenho mesmo de ir, a gente vai-se vendo, tá bem?

— Tá bem», tartamudeou ele. A Susana... a do fato e dos sapatos de atacadores! Ó, meu Deus.

Ela atravessou a rua, com um guarda-chuva aberto por cima da cabeça, e já sem nenhuma chuva. Uma cara molhada e um guarda-chuva baixo tapam muita coisa. Ele ficou ali, na ilha no meio do trânsito dos carros, especado, sem digerir bem a realidade. Via-a a ir-se embora. Tinha tido sempre um problema de digestão quanto à realidade. Talvez fosse a realidade que lhe dava azia.

Olhou em frente e pensou que tinha também, de certa forma, perdido uma amiga, pelo menos a que imaginava, a das ideias dele. Agora tinha as ideias dela, que ela lhe contou, afinal, e agora ele tinha mais ideias, e não sabia o que lhes fazer. O que ele sabia era que as coisas não estavam como há cinco minutos.

Como estava absorto, não reparou que ela tinha voltado para trás e estava do outro lado da passagem de peões; só quando ela começou a acenar é que levantou a cabeça e olhou para ela, ali. Para passar por cima do barulho do trânsito, ela gritou-lhe, a voz a atravessar aquele rio intransponível de automóveis:

— Mas vou pensar nisso!

Depois voltou-se e recomeçou o caminho de onde tinha vindo. O Bernardo ficou na sua ilha, a vê-la a seguir caminho, outra vez, até que ela se perdeu no meio de toda a gente.

 


Pois parece-me que para festejar o décimo-quinto artigo lá consegui escrever uma coisa que se leia.

publicado por xyzt às 22:01
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2 comentários:
De Anónimo a 4 de Fevereiro de 2012 às 00:05
Aqui vem a habitiée
Gostei, a prova é que me senti sentada numa mesa daquel café.....


De xyzt a 4 de Fevereiro de 2012 às 12:43
Obrigado! Fico muito satisfeito. Curiosamente, este texto quase que se escreveu a si próprio, ao longo de hora e meia. Comecei por só querer fazer a meia hora do costume, e ele foi crescendo sozinho e não me deixava parar a meio. Terei sido eu a escrevê-lo, ou o texto a escrever-se? Só tive de fazer algum enchimento e acertar coisinhas. Claro que uma primeira escrita é só um rascunho. E talvez seja verdade que para escrever é preciso escrever.


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